Durante sua trajetória de mais de
três décadas na educação, Silviane Bueno sempre sentiu falta de uma
pauta nas muitas reuniões pedagógicas das quais participou: a lição de
casa. “O dever está presente nas escolas públicas e privadas, mas pouco
se debate sobre seus objetivos”, avalia a educadora, hoje diretora do
Colégio da Lagoa, escola privada de Florianópolis (SC).
Os encontros entre professores e
coordenação pedagógica, segundo ela, acabam por focar mais em aspectos
como indisciplina e avaliação. Para Silviane, apesar da tarefa exercer
papel muito importante na aprendizagem, ela pode se tornar um problema
quando adotada simplesmente por fazer parte de uma tradição na educação,
sem ser questionada ou discutida.
“No Brasil, o debate sobre o dever é
escasso até em termos de pesquisas”, analisa a diretora, que tornou a
lição de casa objeto de sua dissertação de mestrado, defendida na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2013.
Fora do país, o contexto é outro. A
tarefa extraclasse se tornou objeto de debate nos últimos anos, sendo
questionada por alguns educadores e pesquisadores. Em Nova York, nos Estados Unidos, escolas chegaram a aboli-la nos anos iniciais do ensino fundamental.
No distrito de Marion County, localizado na Flórida, também no país norte-americano, a lição de casa para a chamada elementary school (equivalente ao fundamental 1 no Brasil) será abolida a partir do próximo ano escolar,
após decisão da superintendente Heidi Maier. Em vez da tarefa, as
escolas do local deverão passar a encorajar crianças a ler por um
período de 20 minutos todas as noites, acompanhadas pelos pais.
Quem defende o fim da lição de casa
no início da vida escolar argumenta que a criança deve ter mais tempo
para brincar, ler e fazer outras atividades que contribuam para o seu
desenvolvimento e aprendizado – e que, nesse período, a tarefa não
aumenta significativamente o rendimento acadêmico, além de existirem
outras dimensões em questão além dele. No Brasil, contudo, as discussões
são menos radicais, e tendem a colocar em dúvida não a existência da
lição de casa, mas sua carga e intencionalidade.
De acordo com um relatório da OCDE
(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que avaliou
dados do Pisa 2012, o estudante brasileiro de 15 anos passa uma média
de 3,3 horas semanais fazendo lição de casa. No topo da lista aparecem
Shanghai-China (1º) e Rússia (2º), onde estudantes gastam 13,8h e 9,7h
por semana, respectivamente, fazendo as atividades. A média geral dos 39
países que fizeram parte da pesquisa foi de 4,9 horas semanais.
Nem sempre quantidade significa
qualidade, e há exemplos de países que se destacam nos rankings
internacionais e que investem muito na lição de casa e de outros que
também alcançam bons resultados com modelos diferentes, dando mais tempo
para crianças e jovens praticarem outras atividades.
Singapura, hoje na ponta do Pisa
(Programa de Avaliação Internacional de Alunos da OCDE), apareceu em
terceiro lugar na lista da OCDE: lá, os jovens investem cerca de 9,4
horas por semana fazendo lição de casa. Já na Finlândia, grande referência em educação,
o tempo gasto com tarefas extraclasse é de apenas 2,8 horas semanais.
Na Coréia do Sul, que também possui sistema educacional considerado
modelo, o valor é próximo: 2,9 horas por semana. Entre os pesquisados,
os dois países são os locais em que os jovens menos gastam tempo com a
lição de casa.
Para Ana Cláudia de Andrade,
diretora do 2º ao 5º ano do ensino fundamental no Colégio Liceu Jardim,
de Santo André (SP), no contexto brasileiro, tanto cargas elevadas de
lição de casa quanto sua extinção estão longe de ser soluções. A criança
deve ter tempo para exercitar o que aprendeu em aula e desenvolver sua
autonomia, mas também para brincar e fazer outras atividades. “Crianças
de 2º e 3º ano não devem gastar mais do que 1h por dia fazendo o dever.
Para as de 4º e 5º ano, até 1h30”, recomenda a coordenadora, com base
em sua experiência.
No Colégio Liceu Jardim, as crianças
fazem lição de casa todos os dias – inclusive com algumas atividades nas
férias. “Quando voltamos às aulas, a primeira coisa é corrigir a
tarefa”, conta Ana Cláudia, que destaca a possibilidade de revisar
conteúdos e tirar dúvidas nesses momentos.
Já Letícia Dias, coordenadora
pedagógica da Emef Padre José Pegoraro, de São Paulo (SP), defende mais
flexibilidade. “Não acredito que deva haver uma obrigatoriedade de
passar lição de casa todos os dias. Ela deve ser utilizada como
atividade complementar quando o professor achar necessário”, diz. “Hoje,
a escola para os anos iniciais tem responsabilidade de iniciar
alfabetização aos 5, 6 anos. Mas precisamos ter preocupação também com o
brincar, que tem sido deixado de lado.”
Estratégias
Apesar de a lição de casa ter uma
função pedagógica, a verdade é que muitos alunos não costumam encará-la
de forma positiva. A diversificação das atividades sugeridas pode ser um
caminho para mudar essa perspectiva, instigando a criança e tornando a
tarefa mais eficaz na contribuição à aprendizagem. “Um dia o professor
pode passar exercício, no outro uma leitura, uma pesquisa”, sugere a
diretora Silviane Bueno.
No Colégio Liceu Jardim, a aposta é
na elaboração de materiais direcionados: os professores confeccionam
cadernos especiais com atividades de lição de casa para todas as turmas
de todos os anos. “Fazemos discussões todos os bimestres. Nesse
planejamento, nessa elaboração, o professor tem de ficar de olho se
aquilo que ele está dando está de acordo com o que faz em classe. Isso
cria uma cultura pedagógica”, explica a diretora Ana Cláudia de Andrade.
Se nem sempre é possível elaborar um
material específico, por razões que vão do tempo disponível a questões
socioeconômicas, discutir a intenção de cada tarefa já é um passo para
torná-las menos mecânicas e mais significativas. “Muitas vezes, a lição
de casa funciona como um instrumento de controle. As escolas precisam
problematizar isso, perguntar por que e para quê aquela lição está sendo
passada”, defende Silviane Bueno. Entre as funções que a lição pode
exercer estão ser um complemento do que foi visto em aula, revisão de
conteúdos, exercício da criatividade e o aprendizado inicial de como
pesquisar sobre um determinado tema.
Escolas públicas
Nas escolas públicas, a lição de casa
também faz parte da rotina dos alunos. Na capital paulista, a tarefa
extraclasse se tornou obrigatória em toda a rede municipal em 2013, após
a instituição do programa ‘Mais Educação’.
“Damos lição quase todos os dias. A
exceção é a sexta-feira, que alguns professores preferem deixar livre
por entenderem que o fim de semana deve ser para descanso”, conta Ana
Cláudia Pinheiro, coordenadora pedagógica do ensino fundamental 1 na
Emef Professora Helena Lombardi Braga, de São Paulo.
Para Letícia Dias, da Emef Padre José
Pegoraro, no caso da rede pública, os educadores devem considerar a
realidade socioeconômica dos alunos na hora de propor a tarefa de casa.
“Temos desde famílias que não possuem escolarização necessária para
fazer leitura com os filhos a famílias que possuem rotina que não
possibilita acompanhamento da vida escolar”, pontua. Para a educadora,
pesquisas feitas na internet – recurso ao qual talvez nem todos os
alunos tenham acesso – podem dar lugar, por exemplo, a entrevistas com
familiares.
Benefícios
Quem defende a lição de casa no
início da vida escolar argumenta que ela traz benefícios como a fixação
de conteúdos, desenvolvimento da autonomia e o cultivo do hábito de
estudar. Mas, para a diretora Silviane Bueno, é importante dissociar o
conceito de estudo de fazer tarefa, que não são sinônimos. “Em muitos
casos, existe a pressa de se ver livre do dever. Por isso, trabalho
muito aqui na escola que essa não deve ser a única ferramenta”, explica.
Para compor a rotina de estudos, leituras e pesquisas são exemplos do
que pode ser incentivado.
Além dos benefícios de aprendizagem, a
lição de casa também é apontada como uma boa forma de estabelecer uma
conexão maior com as famílias. Ainda que a autonomia seja muito
importante e a tarefa deva se restringir ao que a criança consegue fazer
sozinha, o acompanhamento dos responsáveis pelo aluno pode levar a uma
aproximação natural com a escola. “Por ser uma escola pública, às vezes
percebemos que nem sempre a comunidade participa tanto desse momento.
Mas acabamos, sem dúvida, por estreitar laços”, avalia a coordenadora
pedagógica Letícia Dias.
Nos casos de pouca participação,
também é possível entender melhor em que contexto familiar a criança
está inserida. “Quando a gente identifica que criança não está fazendo a
lição, procuramos contato com a família. Assim, não colocamos na
criança uma responsabilidade que, às vezes, ela não tem”, analisa a
coordenadora Ana Cláudia Pinheiro.
http://www.revistaeducacao.com.br/educadores-defendem-licao-de-casa-nos-anos-iniciais-desde-que-tenha-sentido-no-processo-de-aprendizagem/